Por Francelino Prazeres de Azevedo Filho
O hip hop brasileiro passou por uma fase muito interessante no começo dos anos 2010. Digo “interessante” e não “era de ouro” porque estou falando das minhas opiniões, e pelo que vejo, a crítica especializada não concorda com minha visão, não 100%, ao menos. Naquela época, a moda da vez era um hip hop antropofágico, que sugava as influências dos inúmeros gêneros e tradições musicais brasileiros, sempre trazendo samples obscuros, ganchos que grudavam na cabeça, e um som que borrava o limite entre rap e MPB. Depois, talvez por causa da natural mudança de tendências musicais, talvez por causa do golpe de 2016 que afundou e continua afundando as perspectivas sociais e econômicas brasileiras, o som do hip hop mudou. Ficou mais cru, mais trap, mais agressivo, mais isolacionista e menos melódico. E embora eu reconheça a importância e a necessidade social de tal estilo, particularmente nas letras, não consigo apreciá-lo musicalmente. Para mim, o que era uma “era de ouro” acabou precocemente, sem atingir completamente o gigantesco potencial que eu via.
Ninguém mandou o memorando para Marcelo D2, no entanto. Seu Amar é para os fortes parece situado completamente no estilo de Criolo, Conká, Senzala Hi-Tech e Ogi. É uma espécie de musical hip-hop, lançado em acompanhamento a um curta-metragem de mesmo título, estrelado pelo filho de D2. Como não vi o filme, não posso comentar das qualidades do mesmo, mas no álbum, trechos de diálogos estão presentes em quase todas as faixas, e, devo dizer, pelo que aparece no disco, a história é bem fraca. O diálogo abaixo, da canção Parte 2, é particularmente patético, artificial, e agride meu paladar de tal forma que por si só já seria suficiente para me fazer abaixar a nota:
“– Então, vem cá. Francesa, vai morar em Nova York. Daí tu conhece a brasileirada toda modelo, te apresenta o modernismo e tu resolve vim pra cá pro Rio pra estudar Tarsila do Amaral. Caralho, hein, cara. Tipo, privilégio que virou curiosidade ao invés de virar medo. Visão.
– E você, cara sensível que vai parar lá na galeria pra ficar mais perto da arte, esperto isso. Quero dizer, falta que virou curiosidade ao invés de virar ódio. ”
Se os outros diálogos parecem ter vindo de uma minissérie da Rede Globo, este foi retirado diretamente de uma temporada perdida de Malhação.
Já musicalmente, o álbum é muito bom. Seja por meio de samples ou melodias originais, ele bebe de toda uma variedade de gêneros brasileiros e até mesmo do pop francês retrô, em uma faixa. Depois da tempestade, a faixa em questão, teve seu refrão escrito pelo francês Sasha Rudy, na época com 16 anos, e se destaca pela sutileza e doçura num disco em geral mais áspero. Ainda melhor é Resistência cultural, que após ter sido lançada como single, com participação de Siba e Hélio Bentes, ganha uma versão diferente no álbum. Desta vez com Gilberto Gil nos vocais, e uma sonoridade de sanfona e flauta que parece que veio direto das colaborações de Gil com Dominguinhos nos anos 70. Falando em Siba, foi muito bom ver a magnífica Folha de bananeira, da sua Fuloresta, na voz de Biu Roque, ser sampleada justamente na canção-título, ainda que para mim seja uma das mais esquecíveis do disco em rap e gancho. Febre do rato é instigante, e foi feita sem samples, mostrando o quão bacana fica o som do hip hop com instrumentação assim. Filho de Obá fecha o álbum com seu magnífico refrão em afro-samba cantado por Danilo e Alice Caymmi. Tem uma participação talvez até simbólica de Rincón Sapiência, que para mim é de longe o melhor da geração pós-2016 do hip hop.
O disco é curto, somente 32 minutos, incluindo as conversas moles em todas as faixas. De suas 10 músicas, 4 são sem muita estrutura, do tipo que, em álbuns maiores, sobram e até fazem ligação entre as outras. Neste, entretanto, não há muito a ser ligado, e senti muito a falta de mais canções de porte, que mantivessem o nível de Resistência cultural, Febre do rato e Filho de Obá. A força destas acaba diluída, e sem a constância da pressão musical, não consegui me apaixonar pela experiência. Ainda assim, achei lindo o resgate do estilo do começo dos 10s, e espero que esta obra incentive mais artistas a se enveredar por este caminho. Se não o disco todo, ao menos as músicas mais fortes deixam bem claro como tal caminho pode ser maravilhoso.